Marilia Lomanto Veloso e Sara Mercês
Do Brasil de Fato
Jacques Ranciére, em sua obra “O ódio à democracia não é novidade”, expressa que esse sentimento “é tão velho quanto a democracia”. Também não é novo o “discurso duplo” sobre a democracia. Nesse sentido, importa lembrar a notória frase de Winston Churchil de que a “democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais”. Mas é relevante afirmar que não podemos esquecer que nossas crises são superadas sempre, graças a essa matéria-prima, espaço de nossas esperanças. E assim, “quando vemos a democracia sendo atacada, nos colocamos em prontidão para defendê-la”.
No Brasil, experimentamos a angustiante certeza de que nossa democracia está em grave risco diante da intensidade e dimensão do distúrbio político provocado por Jair Bolsonaro, em suas reiteradas acusações à dinâmica do processo eleitoral, instigando a desconfiança nos protocolos institucionais e tecnológicos das urnas eletrônicas. Impossível ignorar a “paspalhice” do discurso de quem levou vantagem no pleito de 2018, que hoje enloda, não só por conta da incapacidade subjetiva de elaborar um raciocínio menos rasteiro, em respeito à sua duvidosa condição de chefe de Estado e minimamente “entendível” para a sociedade destinatária da escuta da fala presidencial, como também por conta da “inaptidão mental e política” de sua assessoria, notabilizada pela mediocridade, pela subserviência e pela característica singular de se definir como a mais “domada” em nosso campo institucional, menos pela competência e muito pela rudeza de orientação e inconsequência de atitudes marcadas pelos estragos à história de nosso país.
Com efeito, é inaceitável a conduta do Presidente da República de se apropriar do cargo que exerce para atrair ao espaço público oficial representações diplomáticas de dezenas de países, no intuito de verbalizar afirmações que põem em dúvida a credibilidade do processo de votação eleitoral brasileiro, através das urnas eletrônicas. O reconhecimento nacional e externo sobre a validez desse equipamento é irretocável. Registre-se que a Justiça Eleitoral brasileira utiliza o que há de mais moderno quanto às tecnologias de criptografia, assinatura digital e resumo digital. Todo o sistema é auditável e acessível à fiscalização dos partidos políticos, organizações sociais, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Ministério Público e tantos mais entes públicos e privados que desejem se inteirar dos rigorosos procedimentos que o sistema eleitoral adota para validar e legitimar as eleições.
A conduta reprovável do Presidente da República parece que não obteve aplausos dos comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que não compareceram à reunião com os embaixadores, embora convidados
No âmbito institucional relacionado ao Ministério Público, também foi visível a rejeição da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e procuradores regionais dos Direitos do Cidadão de todos os Estados que assinaram a notícia do “ilícito eleitoral” praticado por Jair Bolsonaro, encaminhada a Augusto Aras: “A conduta do presidente da República afronta e avilta a liberdade democrática, com claro propósito de desestabilizar e desacreditar o processo e as instituições eleitorais e, nesse contexto, encerra, em tese, a prática de ilícitos eleitorais decorrentes do abuso de poder”.
Não é fato estranho a relação submissa que Jair Bolsonaro mantem com os Estados Unidos. No entanto, até mesmo a representação diplomática desse país assumiu postura cautelosa e discurso de nítida desaprovação às tentativas desleais do Presidente de desacreditar o processo eleitoral, quando publica o conteúdo de especial relevância para afirmar a idoneidade das urnas eletrônicas: “As eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”.
Alinhada a esse panorama doméstico construído pelo governo federal para ludibriar a confiança da sociedade sobre o “local de fato e de direito” que recepciona seu voto, a conjuntura da sociedade contemporânea assusta por sua prática punitivista, pelo notável avanço tecnológico, apinhado por uma linguagem que agudiza as mensagens de conteúdo falso e carregado de odiosidade contra forças que pensam de modo diverso ao praticado pela ordem do capital financeiro, poder soberano que no século XXI domina o planeta e na América Latina, tem no sistema de justiça seu representante principal.
E nesse ambiente caótico e de inconfundível violação de direitos, de descumprimento a comandos constitucionais que precedem o momento onde a soberania popular pode afirmar sua escolha democrática sobre quem deseja eleger para dignificar nosso passado, afirmar nossa história e garantir a vida social, econômica e política dessa e das próximas gerações, acontecerão as Eleições Gerais de 2 de outubro. E com certeza, podemos afirmar que estamos às vésperas de uma das mais importantes e emblemáticas eleições, após o período da redemocratização do Brasil.
Esse painel marcado por estratégias bastardas de ruptura com discursos divergentes próprios dos processos democráticos de disputas de projetos políticos que cravam as sociedades civilizadas, exige que estejamos “de olhos bem abertos”, nos próximos três meses, de modo a garantir que a soberania popular seja respeitada e o eleitorado possa livremente escolher as representações populares que irão reconstituir o Brasil, resgatando a civilidade, o respeito à Constituição Federal de 88 e o Estado Democrático de Direito.
Desse modo, uma vigília democrática deverá ser rigorosamente exercitada para não permitir que essa caminhada em direção a um recorte esperançoso de novo rumo do país seja atropelada por falsas notícias, ameaças às instituições democráticas, mais drástico ainda, por lesão ética do Presidente às regras do processo eleitoral.
Vale lembrar, por oportuno, algumas significantes prescrições legais que mobilizam as eleições de 2022. A Lei 14.192/2021 modificou o art. 323 estabelecendo como crime eleitoral a divulgação de mentiras sobre os candidatos, candidatas e partidos políticos, capazes de influenciar o eleitorado. Além disso, não só a produção, como também a divulgação/compartilhamento de fake news ainda podem ser enquadradas nos crimes de injuria, calúnia e difamação, com aumento de pena se o crime envolver menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia. Essa previsão legal convoca a atenção da sociedade sobre o caráter de verdade que desenha as informações que divulga, sem os cuidados que devem cercar essa partilha, dando sempre preferência aos veículos de comunicação oficiais e artigos de repórteres profissionais.
Cabe razão ao Ministro Edson Fachin, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral em suas manifestações de indignado fôlego: […] quem trata de eleição são forças desarmadas” […] não admitiremos qualquer circunstância que impeça o brasileiro de se manifestar. […] Quem vai ganhar as eleições é a democracia. Nós vamos diplomar os eleitos e isso certamente acontecerá. Há muito barulho, mas esse tribunal opera com racionalidade técnica”.
Não “ficaremos na janela vendo a banda passar, porque as canções que estão sendo tocadas não são de amor”. Para tanto, temos de garantir nossa participação nas eleições, vigiar cada etapa onde se faz necessária nossa mobilização para esse momento e consolidar o reconhecimento de todas as nações sobre a purificação democrática e segura de nosso processo de escolha política livre e soberana dos mandatos de quem elegemos para comandar e organizar nosso país.
Que essa banda passe e o som de suas canções signifique esperança na força da luta coletiva para transformar a realidade perversa e plena de destituição de direitos que o Pacto Constituinte afirmou e os recuos civilizatórios trataram de desfigurar! E então, a voz de Camila Moreno ecoará do horizonte do Chile, quando festejou o plebiscito que marcou os protestos de 2019 naquele país e cantaremos, enfim, “A partir de agora, todos e todas seremos parte da construção de um país mais digno”.