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O que a mídia silencia quando o assunto envolve as energias limpas?

Modelo vigente de transição energética repete fórmula colonial de desenvolvimento que desinforma, expropria e mata

Impactos da expansão de enegias renováveis na vida de populações locais são ignorados – Arte: Pedro Villaça/Intervozes

Alfredo Portugal e Nataly Queiroz – Brasil de Fato

O Brasil vivencia um considerável aumento no número de casos de trabalho escravo e de conflitos por terra e água no campo. O relatório dos Conflitos no Campo no Brasil 2022, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela, por exemplo, que os assassinatos em decorrência de disputas por terra nas áreas rurais aumentaram 123% em relação a 2020. O caso da Bahia chama a atenção por apontar a presença dos empreendimentos eólicos como grandes causadores de conflitos. Em 2022, juntamente com o agronegócio, eles foram responsáveis por mais de 40% do total de conflitos no estado.

Essa problemática se vincula a nossa história de país colonizado, revelando parte dos desafios para a promoção de direitos fundamentais e da justiça socioambiental, em especial para as comunidades tradicionais. Nesse contexto, o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social está desenvolvendo a pesquisa “Energias Limpas: o que a mídia silencia”, que analisa a cobertura jornalística sobre as chamadas energias limpas.

Leia também: Empreendimento eólico ameaça comunidades tradicionais em Canudos (BA)

A pesquisa, que deve ser lançada no início de 2024, tem no seu corpus 566 matérias publicadas entre os anos de 2021 e 2023 em veículos de abrangência nacional e local. Falamos especificamente de: Agência BrasilFolha de São PauloO EstadãoO GloboMeio Norte (PI), Diário do Nordeste (CE), Tribuna do Norte (RN), Jornal da Paraíba (PB), Jornal do Commercio (PE) e A Tarde (BA). O estudo integra uma frente de análise crítica de mídia do Intervozes intitulada de Vozes Silenciadas, no bojo da qual são analisadas as coberturas jornalísticas da mídia tradicional comercial sobre temas de interesse público, particularmente atinentes aos direitos humanos e à cidadania.

A equipe de pesquisa já identificou algumas tendências preocupantes de silenciamentos. Paralelamente à invisibilidade de um debate complexo e mais aprofundado sobre o impacto da chegada das empresas de energias nas comunidades onde são instalados empreendimentos, ganham espaço, notadamente nos últimos três anos, narrativas acríticas em defesa das chamadas “energias renováveis” também adjetivada como “limpas”. A narrativa sedutora, salvacionista e superficial aponta os grandes empreendimentos de energia eólica e solar como solução para a crise ambiental atravessada pelo planeta.

No entanto, é preciso refletir sobre como essa transição, liderada em especial por grandes empresas, tem impactado nos biomas e na vida das populações locais. Ao que parece, o modelo vigente de transição energética repete uma fórmula colonial de desenvolvimento que desinforma, expropria, mata, silencia territórios, povos e biomas.

A ideia de que o sertão é lugar de atraso e de que a caatinga e o cerrado só têm chão de terra batida e mato seco ainda está muito presente no discurso desenvolvimentista no Brasil. Quando um grande empreendimento, quer seja de mineração ou de energia eólica, chega a uma comunidade camponesa, ocorre uma transformação naquele território em proporções imensuráveis. Se, por um lado, o discurso das mídias hegemônicas ressalta a ideia de progresso, geração de emprego e renda, por outro lado, há o silenciamento sobre impactos que serão absorvidos pela comunidade e bioma, os quais vão desde o aumento dos preços de alimentos e moradia até o desaparecimento de espécies animais e vegetais nativas.

Leia mais: Em desertificação, Caatinga se fragiliza mais com chegada de indústrias de energia renovável

A equipe da pesquisa “Energias Limpas: o que a mídia silencia” realizou, em paralelo com o levantamento das matérias, uma escuta com representantes de comunidades impactadas pela chegada de grandes empreendimentos eólicos e fotovoltaicos. Esses/as relatam um modus operandi das empresas que inclui narrativas desencontradas, muitos não ditos, desinformação e contratos abusivos, de difícil interpretação. As consequências para os biomas em alguns casos são devastadoras, incluindo a supressão vegetal (termo técnico para o desmatamento), aumento de fluxo de veículos pesados e crescimento exponencial da população explorando recursos naturais, muitas vezes escassos, principalmente, água. As fazendas de energia solar, com placas fotovoltaicas colocadas sobre o solo, são um exemplo disso.

O crescimento da população nesses territórios traz ainda outros impactos sociais, os quais incluem aumento de abuso e exploração sexual, violência, alcoolismo e adicção, suicídios e assassinatos. A mídia tradicional comercial precisa se perguntar o quanto de sustentabilidade há neste processo, uma vez que o sacrifício de vidas é o oposto do sustentável.

Nordeste em foco

O Nordeste tem sido o foco prioritário dessas investidas. Na Bahia, comunidades que carregam em suas culturas saberes seculares de preservação e garantia de vida dos seus territórios e biomas têm sido radicalmente impactadas.

As comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto existem, com esta denominação, apenas na Bahia. São formas de ocupação do território típicas do semiárido baiano, em que comunidades utilizam áreas comunais para criação de gado (bovino, ovino e/ou caprino) à solta, sendo comum também o extrativismo e o cultivo de lavouras em lotes individuais. Exatamente por esse uso comunal da terra, são responsáveis pela preservação de dois biomas extremamente ameaçados: caatinga e cerrado.

A despeito dessa importante atuação, as comunidades de fundo e fecho de pasto estão atualmente ameaçadas por grandes empreendimentos eólicos que têm se instalado no semiárido baiano. Um dos destaques apontados pela pesquisa da CPT é na região de Canudos, Euclides da Cunha e Jeremoabo, onde está instalado o Complexo Eólico de Canudos. Esse já foi alvo de ação do Ministério Público Federal por impactar a preservação de diversas espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, inclusive as araras-azuis-de-lear, cujos únicos indivíduos se encontram justamente ali.

No Ceará e Rio Grande do Norte, onde aerogeradores estão em processo de implantação no mar, os impactos se estendem ainda para pesca e mariscagem. O modelo de transição a partir de offshores, impulsionado pelos governos Bolsonaro e Lula, é algo que deve ser visto com menos festejo e mais preocupação. A mudança da paisagem traz também relevantes alterações culturais, na qualidade de vida das pessoas, no turismo e nos modos de vida das populações tradicionais que vivem do mar.

As energias limpas como um negócio e as resistências a essa perspectiva

Durante a pesquisa, também visualizamos uma cobertura centrada no argumento das “energias limpas” como negócio lucrativo e sobre os nossos recursos naturais como commodities buscadas pelas nações do Norte Global. Tal núcleo discursivo invisibiliza o debate sobre o direito à terra, à reprodução dos modos de vida e à vida, de humanos e não humanos, dos territórios onde os empreendimentos são instalados. As comunidades afetadas são apagadas nessas pautas. Predominam acordos entre governos e empresas. Um panorama não democrático e colonial.

É importante salientar que as comunidades e povos tradicionais têm resistido como podem a esses empreendimentos, como é o caso do Polo da Borborema, na Paraíba. Capitaneada por mulheres e suas plantações agroecológicas, as comunidades bravamente lutam contra o avanço dos imensos aerogeradores sobre o semiárido paraibano.

Alguns veículos comunitários e a mídia alternativa também têm sido espaços de resistência, promovendo debates necessários. Vale destacar, por exemplo, a cobertura desse tema realizada ao longo dos últimos anos pelo Brasil de Fato. Nestas matérias, identificamos um deslocamento das fontes principais, em relação às matérias da mídia hegemônica: aqui, as personagens principais são as comunidades e seus povos. As mulheres do Polo da Borborema, os povos tradicionais do oeste da Bahia, as comunidades pescadoras ao longo da costa do Nordeste também são “especialistas” convidadas a falar sobre a produção da energia eólica e solar no país. É importante notar ainda que a diversidade de fontes traz consigo narrativas mais complexas sobre o tema, apontando problemas, como os impactos dos grandes empreendimentos, e possíveis soluções, como a produção individual e comunitária de energias renováveis.

Esta cobertura complexa, com diversidade de fontes e de olhares sobre o assunto se encontra também em tantos outros veículos de âmbito local e nacional, que não compõem essa mídia tradicional comercial que analisamos na pesquisa Vozes Silenciadas. Entendendo a importância do papel desses outros veículos, traremos uma análise sobre sua cobertura numa sessão do estudo chamada Vozes Amplificadas, uma extensão analítica desta pesquisa.

Transição energética sem justiça ambiental é um contrassenso. Para que haja justiça ambiental, é imprescindível ouvir e abrir espaços de participação para as comunidades afetadas. Além disso, é necessário transparência sobre o destino da energia gerada, sobre lucros das empresas e exigência de mitigação do impacto gerado. A mídia empresarial precisa dar espaço para as outras vozes sob pena de ser corresponsável pelas consequências desse processo em vidas humanas e na biodiversidade nacional.

Esta é a primeira publicação de uma série de artigos sobre esse tema que serão veiculados nas próximas semanas, em parceria com o Brasil de Fato. A proposta é lançar luzes sobre esse tema a partir dos achados do Vozes Silenciadas, considerando que a comunicação social é um elemento que se relaciona diretamente com a justiça socioambiental.

*Alfredo Portugal é educador e comunicador popular, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social; coordenador do Brasil de Fato na Bahia e mestre em Educação do Campo pela Universidade Federal do Reconcavo da Bahia (UFRB). É pesquisador e coordenador da edição do Vozes Silenciadas “Energias Limpas: o que a mídia silencia”.

*Nataly Queiroz é jornalista, especialista em Ciência Política pela Universidade Católica de Pernambuco e doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. É professora universitária e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. É pesquisadora e coordenadora da edição do Vozes Silenciadas “Energias Limpas: o que a mídia silencia”.

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