Em audiência
no Vaticano, frei Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional da Comissão
Pastoral da Terra para a erradicação do trabalho escravo, pediu ao papa
Francisco que acompanhe de perto a situação do combate ao trabalho escravo no
Brasil a fim de evitar retrocessos. “Disse ao papa que a política precisa
ser reforçada, não atacada, nem reduzida, como ameaça o novo presidente da
República, e que seu apoio é fundamental”, disse Plassat em reportagem do
Portal UOL, publicada neste domingo, 14.
Conforme a reportagem, o frei dominicano contou a Francisco que, desde 1995, o País tem construído uma política consistente contra a escravidão contemporânea, tendo libertado mais de 53 mil pessoas. E mostrou instrumentos usados pela CPT para a conscientização dos trabalhadores e povos do campo dos riscos a que estão submetidos e também de seus direitos. A comissão, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é a mais antiga e importante instituição no atendimento a vítimas e sobreviventes da escravidão contemporânea e do tráfico de pessoas no Brasil.
Durante sua campanha eleitoral, o então candidato Jair Bolsonaro propôs, em seu programa de governo, revogar a principal legislação aprovada, nos últimos anos, para o combate ao trabalho escravo no país – a emenda constitucional 81/2014, que prevê o confisco de propriedades flagradas com esse tipo de mão de obra e sua destinação à reforma agrária e à habitação popular. Enquanto isso, a bancada ruralista, que o apóia, defende leis que afrouxam o conceito de trabalho escravo.
A denúncia ao tráfico de pessoas para o trabalho escravo com fins econômicos e para a exploração sexual junto com a defesa dos trabalhadores migrantes têm sido temas principais de seu papado. Estão em sua agenda, aliás, desde que Jorge Mario Bergoglio ainda era bispo na Argentina e apoiava organizações sociais que atuavam no combate as esses crimes. Desde que substituiu Bento 16, fóruns e eventos têm sido patrocinados pelo Vaticano sobre o tema.
O encontro com Xavier Plassat ocorreu em meio à Conferência Internacional sobre o Tráfico de Seres Humanos, organizado pela Seção Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, realizado de 9 a 11 de abril.
Em discurso para os 200 participantes da conferência, entre eles, brasileiros, Francisco afirmou que “o tráfico deturpa a humanidade da vítima, ofendendo a sua liberdade e dignidade. Mas, ao mesmo tempo, desumaniza quem a pratica, negando-lhe o acesso à ‘vida em abundância’. O tráfico, por fim, fere gravemente a humanidade no seu conjunto, dilacerando a família humana e o Corpo de Cristo”.
Também agradeceu aos representantes das entidades presentes pelas iniciativas que desenvolvem para prevenir o tráfico, proteger os sobreviventes e punir os responsáveis, muitas vezes sob risco de morte. O próprio Xavier Plassat viveu sob a mira de jagunços e pistoleiros por conta de sua atuação no acolhimento de trabalhadores que fugiam de fazendas na Amazônia e no encaminhamento de suas denúncias ao Estado brasileiro e a organizações internacionais.
Durante a conferência, foram discutidas propostas para que a Igreja Católica atue, em escala global, no combate a esse crimes. Defender mais transparência nas cadeias produtivas de empresas; ampliar os programas de orientação sobre os riscos a trabalhadores migrantes e empoderá-los a relatar abusos; defender políticas de compras responsáveis por parte das empresas. E engajar a igreja em “abrir os olhos” dos consumidores que, sem saber, apoiam trabalho escravo e ajudar a gerar demanda por produtos livres desse tipo de exploração.
Um exemplo de atuação no sentido econômico é a Arquidiocese de Sydney, na Austrália. John McCarthy, coordenador de sua Força Tarefa contra a Escravidão Moderna, explicou a este blog que a Igreja Católica é um dos maiores empregadores e, ao mesmo tempo, um dos principais compradores de bens e serviços do país, incluindo escolas e hospitais geridao pela instituição. E que a Força Tarefa tem atuado na verificação das cadeias produtivas dos fornecedores da igreja e exigindo regras contratuais para proteger os trabalhadores ao longo dessas cadeias, exigindo transparência, cumprimentos de leis e regras e comprometimento com os direitos fundamentais.
Além de cobrar ação de governos e empresas, o papa Francisco também tem defendido a responsabilidade individual, pedindo que pessoas não comprem mercadorias produzidas com trabalho escravo.
“Toda pessoa deveria ter consciência de que comprar é sempre um ato moral, e não simplesmente econômico”, afirmou no documento chamado “Não mais escravos, mas irmãos e irmãs”, divulgado em 2014.
Retrocessos
A emenda 81/2014 não criou o confisco de propriedades sem indenização, apenas alterou o artigo 243 da Constituição Federal, que já tratava da expropriação de imóveis flagrados com cultivo de plantas psicotrópicas ilegais, acrescentando a questão dos trabalhadores escravizados. A proposta de sua exclusão aparece no programa de governo do então candidato na forma da proposta “Retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81”
Curiosamente, o então deputado federal votou a favor dessa emenda à qual, depois, se colocou contrário, de acordo com o registro do primeiro turno de votação, ocorrido em 11 de agosto de 2004. Ela corria na Câmara sob a alcunha de PEC 438/2001. Naquele dia, todos os partidos e bancadas recomendaram a aprovação da emenda e 326 deputados votaram a favor. Mesmo com a orientação, dez se posicionaram contra e oito se abstiveram.
A chamada PEC do Trabalho Escravo levaria oito anos para ser analisada e aprovada em segundo turno na Câmara, em 22 de maio de 2012. Foram 360 favoráveis, 29 contrários e 25 abstenções. Nessa data, o registro de votação não indica a presença do deputado no plenário.
O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer, diante das Nações Unidas, a persistência de formas contemporâneas de escravidão. Foi o primeiro a criar uma política nacional efetiva de libertação de trabalhadores em 1995. O primeiro a lançar um plano integrado de combate ao crime em 2003, a ter uma instância de articulação de políticas (a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo) e a publicar, periodicamente, um cadastro com os infratores a partir do mesmo ano, a “lista suja”. Criou o primeiro pacto empresarial multisetorial contra a escravidão em 2005. E implementou ações pioneiras de repressão e prevenção que se tornaram referência em todo o mundo.
Mas vem enfrentando dificuldades para levar adiante a política. A “lista suja” tem sofrido ataques enquanto a fiscalização do trabalho vê dificuldades operacionais causadas pela falta de recursos. E setores do Congresso Nacional buscam aprovação de projetos que afrouxem a definição legal de trabalho escravo contemporâneo, querendo que ela se resuma a cárcere privado com vigilância armada, tornando irrelevante as condições em que foram encontrados os trabalhadores. Investidores e compradores dos Estados Unidos e Europa veem com preocupação a situação, afirmando que isso levaria à perda da confiança sobre a qualidade dos produtos brasileiros exportados. (Do Portal UOL).